Eu sou apaixonada por mitologia grega, tenho mais de um reconto com alguns dos meus mitos favoritos. Este eu escrevi para um edital. Infelizmente, ele não passou, mas eu gostei tanto que decidi mostrá-lo para vocês. Espero que gostem.

A esperança era cegante, como ela tinha o hábito de ser. Além disso, sempre vinha acompanhada da tragédia, a sua irmã mais velha. Foi assim que as melodias de Orfeu se transformaram em um longo canto fúnebre, um lamento que acompanhava cada um dos seus passos. Os deuses, veja, não eram cruéis de propósito. Afinal, era um pedido simples, não era?

Não olhe para trás.

A descida, a viagem até o reino dos mortos. Essa era a parte fácil. A desdita de todos que ousavam respirar pela primeira vez, a única certeza dos vivos. Somente as moiras sabiam como e quando a morte viria, cabia a elas lerem os fios do acaso. Contudo, era dever de alguma força maior trançar o seu manto, esconder as serpentes entre as flores, dar aos amantes os seus últimos suspiros. Fora tão rápido, o adeus de Eurídice.

Os acontecimentos se confundiam nas suas muitas versões, nos murmúrios passados de boca em boca. Eles fugiam de um homem invejoso? Soltavam as mãos um do outro? Ou era só ela, correndo assustada e sozinha? Como mais ela poderia ter caído? O desfecho permanecia o mesmo: Eurídice, pálida, com o veneno se espalhando nas suas veias. Levada por um beijo do destino. Mas eu também tenho um toque do divino, Orfeu pensou ao embarcar na sua jornada.

O amor ainda inflava o seu peito, escapava pelos dedos e lábios. A sua música era mais doce do que todas as sementes de romã, mais pura do que os rios celestiais. Se Hermes fizera a lira como um presente para o seu pai Apolo, então Orfeu havia encontrado a sua magia. Deixou que as notas musicais ecoassem pelo salão pálido, subisse pelo trono feito de ossos, até os ouvidos céticos do soberano senhor das sombras e da sua bela esposa. A canção era a mesma que preenchia o seu ser, uma dança entre sublime agonia e milagroso afeto. Por um breve segundo, um delirante momento, Orfeu vislumbrou a humanidade nos olhos de Hades, no sorriso de Perséfone.

“Uma vez já fomos jovens assim.” Ela sussurrou para o marido.

“Vá embora, que a sua amada o seguirá. Confie nela e não olhe para trás.” Ele comandou.

Deveria ser simples, colocar um pé na frente do outro. Dar um passo de cada vez, um passo de cada vez, um passo de cada vez. O problema era que mesmo se arrancasse uma flecha da carne, o ferimento ainda precisava sangrar antes de poder cicatrizar. Havia alguma mira mais certeira do que a de Eros? Alguma mais mortífera?

Entretanto, havia atravessado florestas, enfrentado desfiladeiros e percorrido montanhas com a flecha da paixão fincada no peito, não seria agora que iria desistir. Não importava que tivesse o próprio sangue nas mãos, que tentasse conter o crescente ferimento.

Talvez os deuses não fossem cruéis de propósito, porém pareciam incapazes de compreender como a chama que os mantinha aquecidos era a mesma que consumia reinos inteiros. Os dias só eram preciosos para quem os sentiam passar, os minutos necessários para quem precisava de cada um deles. E, para alguém enamorado, não havia tempo o suficiente, nunca havia o suficiente. Um segundo ou uma eternidade, Orfeu só almejava ouvir a voz dela de novo.

“Eurídice?” Ele perguntou para o vazio, o caminho se estreitava.

Silêncio. Era simples, um pé na frente do outro. Não tinha certeza do quanto já havia andado, sentia só o coração batendo. Tum, tum, tum. Não era nenhum truque, não poderia ser vindo de um deus justo como Hades. Contudo, poderia ser um teste. Pela primeira vez, a música não bastava. Ele precisava provar o que sentia, mas Eurídice sabia a extensão do seu amor, não sabia? Era maior do que o universo, inventava mundos. Se Orfeu ao menos pudesse ouvir os passos dela, se eles pudessem conversar.

“Eurídice...” Ele tentou de novo, uma ladeira surgia.

Silêncio. Os seus pulmões falhavam, os seus pés tropeçavam. A dúvida era impiedosa, pesava nos ombros de quem a carregava. O seu corpo o traía, a sina de ser apenas mais um mortal nas teias da fortuna. Se eles pudessem cantar juntos mais uma vez, assim Orfeu teria certeza, saberia no seu âmago que tudo ficaria bem.

“Eurídice.” O nome dela, a sua última prece.

A pequena luz naquela distância só poderia ser uma miragem. O desespero nascia no escuro, criava raízes profundas, regadas por lágrimas mais fortes do que aquele que as derramava. Os deuses poderiam não ser cruéis, mas não gostavam de serem desafiados.

Silêncio. Não olhe para trás.

Mesmo assim, não conseguia se impedir. Não importava a versão da história, Orfeu sempre hesitava. Alguns diziam que era falta de confiança, outros que era falta de amor. A verdade era muito mais dolorosa, pois se aquele fraco homem a amasse menos, Eurídice teria sido salva. Já que era sempre a esperança cega do seu amante, que fazia ele se virar e olhar.

Enquanto eu escrevia esse conto, ouvi muito algumas músicas do Hozier e do musical Hadestown, que é também um reconto do mito de Orfeu. Por isso, achei legal deixar aqui links para vocês ouvirem também, caso não conheçam.

Do Hozier, eu ouvi bastante “Talk” e “Through Me (The Flood)”.

De Hadestown, vocês podem conferir uma das minhas favoritas no vídeo acima ou a apresentação do elenco no Tiny Desk para mais.

Todas essas músicas também estão disponíveis no Spotify 💜

Por hoje é só!

Espero trazer outras histórias para vocês na newsletter em breve. Se você gostou dessa edição, não esquece de deixar uma curtida ou um comentário para eu saber, ok?

Como sempre, obrigada por estar comigo nessa jornada.

Até a próxima!

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