Quase escrevi essa edição deitada na cama, passei cinco dias lutando contra uma gripe e queria ser útil de algum jeito. Não que o meu corpo fosse deixar. Nada mais ridículo do que estar sendo atacada por uma febre baixa, mas insistir que precisa fazer alguma coisa, qualquer coisa.

Deixei passar todas as ideias que tive, chegando a conclusão que já tem gente falando de assuntos mais interessantes, relevantes, outros-tantos-antes. Que alívio me render a minha insignificância. Portanto, fiquem aqui com um conto de terror inspirado por aquelas bonecas bebês reborn:

O filho morto

Ela tinha certeza de que seu filho estava morto. Após o parto de longas horas, Dolores pegou a criança no colo uma única vez. Suja, cheia de sangue e outras gosmas. Não tinha cabelos, o rostinho todo amassado. Sem choro, nem movimentos. Sufocado ao nascer, logo levado embora. Por isso, Dolores ficou aterrorizada ao chegar em casa e se deparar com aquilo no berço.

Entrar no quarto na manhã seguinte após sair do hospital, ainda se sentindo fraca, deveria ser erro o bastante. Pensou que precisava encarar o vazio antes de se deparar com um caixão diminuto. Jamais imaginaria a cena à sua frente.

A coisa se assemelhava, sim, a um bebê recém-nascido. Miúda, de cara exprimida, com pezinhos delicados. Só que mechas escuras se esparramavam por toda a cabeça, e as mãos eram punhos bem cerrados. As pálpebras de plástico repousavam fechadas.

O primeiro horror que ela sentiu foi mudo, do tipo que desperta a curiosidade mórbida. Dolores esticou uma mão trêmula até aquilo, sua palma cobria toda a extensão da pequena barriga. Como esperado, não respirava. De cenho franzido, Dolores se abaixou para enxergar os detalhes melhor. Cutucou a bochecha com o indicador, onde a unha afundou no que parecia ser silicone.

Foi quando os olhos da coisa se abriram, fazendo Dolores gritar.

Os braços fortes do Marido a envolveram, a boca dele contra o seu ouvido murmurava palavras que fugiam do entendimento. Dolores mal sabia como havia ido parar no chão do berçário, mas ela ainda encarava os olhos de vidro que a miravam através das grades do berço. Na face, uma marca de meia-lua onde Dolores afundara a unha momentos antes.

O grito dela ecoava pelo espaço, o seu corpo inteiro tremia. Dolores apontava, balbuciando. O Marido olhou de relance, exibiu um sorriso paterno ao pegá-la no colo tal qual criança. Enfim, algumas palavras venceram a cacofonia:

— É só o nosso filho.

Dolores se calou, de olhos arregalados para ele.

— Nosso filho está morto — ela sussurrou, abismada que ele não soubesse disso. Afinal, havia testemunhado tudo.

O Marido a fitou com a pena que se reserva para os loucos.

Levou-a de volta para a cama de casal.

* * *

O horror inicial passou, pois era apenas um boneco. Em nada se parecia com seu filho, mas deveria ter sido encomendado para lembrar o Marido. Tinha a cor de cabelo e de olhos, perturbadores, iguais aos dele. Mais realista do que aquelas bebês que entregavam para as garotinhas já irem treinando para quando fossem mamães.

Dolores piscou algumas vezes, segurava o boneco a certa distância. O Marido estava ao lado; o semblante cheio de expectativa, beirando a decepção. Colocou aquilo no peito dela, como se fosse capaz de abrir a boca para mamar.

Ele tentara a levar de volta ao berçário nos últimos dias, porém ela se recusava. Ia apenas ao banheiro, beliscava alguma comida na cozinha. Vagava pela casa igual a um fantasma. De toda forma, precisava repousar; não era o normal depois de tudo que passara?

Agora, o Marido se acomodava na poltrona próxima à cama, a que tinham comprado para quando ela fosse amamentar o filho morto. Dolores, sobre o colchão e abaixo dos lençóis, não conseguia entender o que ele queria.

— É o nosso filho, está vendo? — o Marido repetia.

De cenho franzido, Dolores olhava do boneco para o Marido. As pálpebras de plástico piscavam quando ela mexia a coisa um pouco, a marca de meia-lua continuava na bochecha de silicone. A suposta pele era macia como a casca de um pêssego, porém os dedos viviam colados, tanto das mãos quanto dos pés. Não poderia chamar aquilo de corpo, muito menos de seu filho. Por fim, Dolores devolveu o boneco para o Marido sem responder. Se ele precisava daquilo para passar pelo luto, que assim fosse.

Ela ainda sentia as próprias entranhas se rearranjando, os sangramentos e os humores. Estava sem forças para rebater, para lembrá-lo de que o filho estava morto. Agarrou o livro que deixara de lado quando o Marido entrou com o boneco, abriu na página em que havia parado e entrou de novo no Hotel Overlook, onde um garotinho precisava se esconder do alcoolismo violento do pai.

O Marido suspirou, foi para longe com a coisa.

* * *

Os raios de sol se esgueiravam pelas frestas das cortinas na sala de estar. Dolores aproveitava o pouco deles, sentada no tapete em frente as portas duplas de vidro que levavam ao quintal, pois o Marido nunca queria abri-las por completo. Algo sem sentido sobre não acordar o boneco.

Já haviam se passado semanas o suficiente para Dolores sentir que o seu corpo lhe pertencia de novo. Parecia um milagre depois de todo o trauma. Ainda estava de licença do trabalho, por isso, continuava colocando a leitura em dia. Saboreava as últimas páginas de um Shirley Jackson quando ouviu do corredor:

— Desnaturada, nem pega o menino no colo — a Sogra murmurou para alguém ao celular.

Foi breve o tempo no qual elas se deram bem, oito meses e meio precisamente. Aí o neto veio natimorto, levando embora consigo o amor prematuro da Sogra. Dolores não tinha lágrimas para isso, guardava as que vinham para a noite quando se encontrava sozinha. Dormia no quarto de hóspedes agora, pois o Marido levava a coisa para a cama no começo da noite, ninava o boneco com cantigas e insistia que era o filho deles.

— Juro para você, ela nunca olha para a criança — a Sogra continuou a resmungar, sua voz se aproximando.

Dolores preferiu se encolher para não ser vista, entre o sofá e as cortinas. Sentia o calor do sol esquentando um fio através da face, fechou os olhos ao ouvir mais dos desaforos da Sogra para seja lá quem fosse. Adormeceu ali, como um gato preguiçoso.

Pensou sonhar com um choro de criança, foi despertada por um toque suave do Marido. Ele sorriu fraco, todos os seus sorrisos vinham acompanhados daquele cansaço nos últimos dias. Dolores acariciou o rosto dele, que deixou uma lágrima fugaz escorrer pelo rosto.

— Pode ficar de olho no nosso filho só por um instante?

— Querido, nosso filho está morto — Dolores respondeu em um tom maternal.

O Marido chorou mais, caiu no seu colo sobre o tapete mesmo. O cabelo estava seboso, o ranho escorria pelo nariz. Dolores o abraçou, fez carinho nas costas envergadas de tristeza. Pronto, pronto. Passaram uma eternidade ali até ele se recompor, então falar que ia ligar para a irmã dela, para ficar de olho no boneco nesta noite. Dolores não teve coragem de contestar, apenas resgatou seu livro e foi para o quarto descobrir como Merricat envenenara a família.

* * *

Colocava açúcar no seu café depois do almoço quando foi interrompida. Era um domingo com a família, vieram a Sogra, a Mãe, o Pai e a Irmã. Fingiu não ver as trocas de olhares, ignorou certas insinuações. Dolores voltaria ao trabalho na virada do mês, preferia se concentrar nisso, e havia preparado uma bela feijoada para celebrar.

A refeição fora feita no jardim, sempre tinha gostado de passar tempo ali e, quanto mais o Marido se trancava em casa com a coisa, mais ela se encontrava do lado de fora. Só que agora ela estava dentro, mexendo o seu café com uma pequena colher, quando a Mãe e a Irmã chegaram.

— Se eu fosse você, nunca mais voltaria a trabalhar com essa coisinha linda em casa esperando — a Irmã exclamou, segurava o boneco nos braços.

Dolores deixou a xícara cair, tamanho o susto ao se virar. A Mãe logo a ajudou a limpar, enquanto a Irmã abraçava aquilo de forma protetora. O grito ficou preso na garganta de Dolores, impedindo todas as palavras que poderia dizer de encontrarem seu caminho para fora. Ela se cortou sem querer na pressa de recolher os cacos, a palma de mão se enchendo de sangue.

— Talvez seja melhor estender sua licença, não é, meu bem? — A Mãe sugeriu ao pressionar com um pano de prato limpo o ferimento.

Sem saber o que responder, Dolores apenas sorriu. Pouco depois, ela se retirou em silêncio para o quarto e, deitada na cama, começou a ler “O papel de parede amarelo”, de Charlotte Perkins Gilman.

* * *

O Marido estava com olheiras profundas, bochechas cavadas da perda de peso, um eco de si mesmo. Dolores concordou em ir junto na consulta pelo bem dele. O homem havia insistido para deixarem o boneco com alguém, ela se rendeu e ligou para a Mãe.

O ar-condicionado do escritório a deixava arrepiada, os diplomas espalhados pela parede intimidavam. A cada instante, Dolores via seus olhos atraídos para o relógio na parede. O Marido falava, falava, falava. Até que enfim, uma pausa, e o psiquiatra indagou:

— E a senhora, por que evita tanto seu filho?

Dolores riu.

Os dois homens a encararam, seríssimos. Ela piscou devagar, sem entender, afundou no divã ao lado do Marido. Dolores mordiscou a boca, para conter uma nova onda de riso, agora nervoso. Se ela tivesse alguma foto do boneco, mostraria ao psiquiatra. Não conseguia acreditar que aquilo estava acontecendo.

— Como se sente quando vê o seu filho? — o doutor muito importante insistiu.

Dolores se virou para o Marido, que apenas inclinou a cabeça para ela. O silêncio se estendeu, ambos continuavam a observá-la. Ela abriu e fechou a boca algumas vezes, até que não aguentou mais.

— Meu filho está morto.

* * *

Eles a arrancaram do trabalho, trancaram em casa. Sob ordens médicas. Dolores resistiu o quanto pôde, mas os remédios faziam rápido efeito após forçados goela abaixo. A Mãe e a Sogra se revezavam para garantir que ela seguiria a rotina.

A Irmã também surgia, sempre com a coisa no colo. As mulheres se reuniam ao seu redor nesses momentos, entregavam-lhe o boneco, que permanecia sempre o mesmo. Punhos cerrados, olhos vidrados. Dolores aprendeu a se calar quando essa hora do dia chegava, pois os seus protestos só lhe rendiam uma dose a mais de comprimidos.

O Marido parecia haver desistido ou voltado ao trabalho, ou as duas coisas. Só o via a noite, pois ela não podia mais sair muito do quarto de casal. Dolores caía aos prantos no peito dele, implorava para acabar com esse tormento sem sentido. O Marido chorava também, mas nada fazia.

* * *

Percebeu que, para fazê-los relaxar, precisava tratar a coisa como filho. Dolores se obrigou a aceitar a ideia. Notava os sorrisos se transformando ao seu redor a cada simples gesto.

No dia que acolheu o boneco por mais tempo nos braços, a Sogra a levou para um passeio no jardim. Quando fingiu amamentá-lo e pediu para ele ficar um tempo dormindo na cama com ela, a Mãe lhe deixou escolher um livro para ler. Não de terror, como gostava.

Dolores sentia o gosto de liberdade, mesmo que combinado com o sabor dos remédios. As conversas no seu entorno deixaram de ser sussurradas, as mulheres não a ficavam vigiando mais quando estava com aquilo. O passo final foi entrar no berçário, colocar a criança bem acomodada ali no berço. Enfim, saíram de sua casa e a deixaram em paz.

O Marido disse que ela ainda não precisava buscar emprego, para quê? Ele ganhava bem o suficiente, seria melhor Dolores aproveitar o tempo com o filho. Ela mordeu a língua até sangrar por trás do sorriso sem exibir os dentes, engoliu o grito. Sim, era claro, continuaria brincando de casinha pelo tempo que fosse necessário.

Um dia, a dona de casa exemplar entrou correndo na cozinha. Fumaça invadia a casa, pois calculara mal o tempo da travessa no forno e precisava socorrê-la. Abanava ainda o fogão quando ouviu o Marido chegar, prestou pouca atenção nele até um rugido agoniado irromper pela casa.

Dolores deixou a travessa se espatifar em mil pedaços no chão, escorregando apressada pelo caminho de volta ao berçário. Sentia o coração enlouquecido no peito ao adentrar, desesperada por se lembrar de repente: deixara o boneco na banheira onde lhe dava banho, a cabeça cheia de xampu e cercado de água.

— Nosso filho está morto, está morto — o Marido berrou, com a coisinha molhada nos braços, os olhos de vidro encarando o nada.

Dolores sorriu, aliviada por ele finalmente enxergar a verdade.

Por hoje é só

Tenho escrito umas coisas soltas, mais puxadas para o macabro, provavelmente porque estou meio obcecada pela Mariana Enríquez. Falo melhor disso outro dia, creio eu. Por agora, quero terminar de me livrar dessa gripe chata.

Até a próxima 💜

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