
A primeira vez em que me deparei com a pergunta/conceito que intitula essa edição da newsletter não foi em nenhum livro sobre escrita criativa ou aula de literatura. Elas vieram da boca da Aabria Iyengar, uma talentosíssima mestre e jogadora de RPG.
Eu a conheci graças ao programa Dimesion 20, do DropOut, que me introduziu no mundo de jogos de roleplay nesse estilo (pelo qual fiquei obcecada). Também assisti LA By Night, que era com Vampiro: A Máscara, até eventualmente conseguir participar de uma mesa para aprender Pathfinder, entre outros.
Aqui o básico: você cria um personagem para interpretar, formula um passado para ele, preenche uma ficha e manda para o mestre os detalhes. Há uma troca, juntos vocês vão ver como esse personagem se encaixa no mundo. Além disso, com os outros jogadores, é um jeito de montar uma narrativa em conjunto.
A ficha é a parte técnica. Nela, você coloca ancestralidade, classe, nível, habilidades, inventário, etc. É a parte, bom, jogo do jogo. Ela não vai conter o passado trágico nem os objetivos de vida dele. É algo, de certa forma, frio. Estatísticas. A graça está mais em saber o que colocar ali que vai condizer com a trama que você quer contar.
Isso também vale para a escrita. Eu não gosto de fichas “frias”. Pouco adianta saber data de nascimento, signo, cor favorita, tipo sanguíneo, se nada disso for afetar a narrativa do seu livro. Direta ou indiretamente.
Mas se perguntar: “Qual é a mentira que meu personagem acredita?” é o tipo de coisa que abre os olhos para um bom arco narrativo. Como essa mentira molda a visão de mundo desse personagem? O que ele faz por causa disso? Ele descobre alguma verdade no caminho ou morre sem ter sua crença abalada?
Vou usar a protagonista do meu livro Rainha de Dois Reinos de exemplo.
Ainda muito jovem, Beatrice perdeu a mãe para uma doença, após anos da rainha viver em amargura por não ter a melhor das relações com o rei e a líder das sacerdotisas do reino, que todos pensam ter um caso com ele. Quando, no começo da adolescência de Beatrice, eles acabam em uma guerra com um país vizinho, essa líder o aconselha a esconder sua filha nos Templos. Fato que os afasta. Nisso tudo, para selar a paz, surge uma profecia entre as sacerdotisas, e Beatrice se vê obrigada a casar com alguém que nem conhece.
A mentira em que Beatrice acredita é que tudo isso, no fim das contas, é culpa da Anciã. Se ela nunca tivesse interferido, sua mãe estaria viva, não haveria guerra e seu pai nunca teria duvidado da capacidade da jovem de ser rainha. As suas ações são movidas por essa vilã imaginária, pois ela jamais soube a história completa vinda de nenhuma dessas figuras paternas em sua vida. Assim, Beatrice faz escolhas questionáveis e fica cega para o desenrolar de outros perigos, bem mais próximos.
Eu precisei anotar tudo isso em uma ficha de personagem? Mais ou menos.
Algumas coisas a gente só descobre escrevendo. Apenas a história entre o trio mais velho já me renderia um livro inteiro se eu quisesse.
Um jovem herdeiro do trono apaixonado por uma sacerdotisa, amiga de outra que veio de uma família ambiciosa e que deseja se tornar a líder dos Templos. Uma troca infeliz de papéis, quando a mestra delas declara que a garota apaixonada é quem deve se tornar a nova líder, portanto fica proibida de casar. Então, a família obriga sua amiga a se casar com o príncipe que tomará a coroa. Há conflito aqui, destinos cruzados, mentiras que essas pessoas se contam para poderem seguir em frente.
O que você acha que cada um deles se disse até chegar ao ponto em que Beatrice sofreu as consequências das ações deles? Que criou a mentira que ela acredita e precisa superar?
É claro que cada escritor tem o seu processo criativo, mas acredito que vale a pensar refletir para além dos dados frios de uma ficha técnica. Ou, melhor ainda, que tal montar a sua própria para aprofundar seus personagens mais importantes? E, sim, você pode colocar o signo ali se quiser também.
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Para ajudar quem quiser, segue abaixo umas perguntas que eu gosto de me fazer quando quero conhecer algum personagem melhor:
Qual a sua maior virtude? Qual o seu maior defeito? Como essas duas coisas coexistem na mesma pessoa?
Ele tem uma visão de mundo realista ou sonhadora? Por quê?
O que as roupas dizem sobre o personagem e a sua realidade socioeconômica?
É uma pessoa de muitos amigos, de poucos ou nenhum?
Como a relação com a família (ou a falta dela) afeta o personagem?
É uma pessoa com alguma peculiaridade? Pelo que um desconhecido se lembraria dele?
Espero que sejam úteis!
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Por hoje é só
A construção de personagem é a minha parte favorita na hora de escrever, faz a história realmente ganhar vida para mim.
Me conta aqui qual é a sua parte favorita?
Até a próxima.